
Por entre variáveis tão familiares como o amor pelo o ofício ou uma tradição nacional, a manutenção de um legado é complexa, envolvendo todo um processo em muito semelhante à dessalga do bacalhau. Ambos são morosos, exigem técnicas apuradas e, acima de tudo, um fator que tende a escassear nos dias de hoje, ainda que se encontre em praticamente qualquer lugar: tempo. A passagem de testemunho – como a dessalga – passa por fases mais estagnadas e momentos de espera delicados. Hoje, são as filhas quem relata com lealdade a epopeia do Batista do Bacalhau, uma das casas mais célebres da região de Aveiro e último reservatório do mais tradicional dos petiscos portugueses: o bacalhau, claro está.
Nascido a 1930, António Ferreira Baptista era multidisciplinar até onde a energia permitia. Homem dos intermináveis ofícios, conduziu cavalos como carroceiro, cumpriu o serviço militar, foi factor dos caminhos-de-ferro, trabalhou o barro, serviu como armazenista, importou na indústria vinícola e outros mais, tantos que chegam a não caber neste parágrafo. Para além das profissões, sempre cultivou boas relações com os conterrâneos e era prontamente classificado como bom ouvinte, exímio orador e dono de uma caligrafia invejável. É inevitável que a história desta casa não seja, também, a história dele e das suas peripécias. De como emigrou dentro do país, de como, numa era de cultivo, lançou à terra as sementes de amizades que, em tempos, o auxiliaram e hoje o lembram. O Batista é este, do bacalhau falamos a seguir.
Corria o ano de 63 e surge a oportunidade de explorar um espaço na zona da Forca, que Batista e a mulher prontamente trataram de agarrar. Com uma oferta eclética a nível de tesouros gastronómicos, o estabelecimento com morada perto da atual estação de Aveiro ia fazendo as maravilhas dos aldeões. Arroz com costeletas de cebolada, iscas de fígado, língua estufada fatiada, tripas cozidas e tudo o que a matriarca da família pudesse, e soubesse, cozinhar. A qualidade dos produtos confeccionadas era exaltada por quem lá petiscava, almoçava ou lanchava, tal era a prontidão da oferta.
Sensivelmente 10 anos mais tarde e pelas próprias mãos, começa a ser construída a casa de família, no espaço do presente edifício. A pouco e pouco, o lugar mais íntimo do agregado familiar vai sendo aberto a clientes de toda a região e o espaço desdobra-se entre o propósito de mercearia variada, tasca e drograria, com o espaço das traseiras reservado à oferta de lanches e petiscos variados.
O amor pelo bacalhau era antigo – do tempo em que o vendia às postas, com o preço nelas impresso – e era tanto, que bastava para converter gente que nunca o havia provado em adeptos incondicionais da iguaria. De resto, esse era um exercício recorrente. Mas não nos equivoquemos: o bacalhau estava, ainda, longe de ser a principal bandeira do local. Apesar de só servido ao lanche, estava reservado a amantes empedernidos e a fregueses que sabiam ao que vinham. Só mais tarde, graças à receita fornecida por um cozinheiro de bordo, se passou a vender bacalhau como prato e refeição de pleno direito.
Algures na década de 80, dá-se outro dos pontos de viragem que iconizaram o Batista do Bacalhau. Um grupo de trabalhadores agrários solicitou febras e bacalhau para a refeição. Na reta final do banquete, viram-lhes ser negada nova porção de bacalhau, solicitada pelos próprios. Indignados, barafustaram e disseram-se roubados. Daí a diante, a indicação de Batista foi dada no sentido do bacalhau ser servido às postas, na íntegra, ao invés do produto final lascado. Os preços acompanhariam a transformação e o repto para a consolidação da lenda gastronómica estava lançada.
Imediatamente antes da passagem do milénio, o velho edifício é demolido para dar lugar ao restaurante de hoje. Agora equipado e digno, munido das melhores condições. O cônsul norueguês decerto concordará: acompanhado pela mulher e amigos, viaja religiosamente até S. Bernardo (só) com o intuito de degustar a iguaria, não fosse esse um dos seus principais clientes.
Escusado será dizer que todo o negócio deve ser alimentado a entrega, a suor sentido e a amor incondicional. Apesar de nisso não constituir novidade, a tradição hoje ostentada pelas descendentes representa o que de mais puro uma herança tem.